MADAME SATÃ

 Qual personagem e história de vida iria proporcionar uma estreia melhor para Karim Aïnouz do que Madame Satã? O filme foi o primeiro em que o cineasta cearense assumiu o posto de diretor, depois de assinar alguns curta-metragens e roteiros para outros diretores. Mas foi em 2002 que ele conseguiu retratar toda a intimidade, drama e expressão de um dos personagens mais emblemáticos e pouco conhecidos do país. Ainda soube explorar os incríveis Lázaro Ramos, Flávio Bauraqui e Marcélia Cartaxo, que naquele momento não eram tão conhecidos como hoje.

O filme trata de um período da vida de João francisco dos Santos, o Madame Satã, porém antes dele emplacar sua carreira como artista e transformista. Um homem negro, homossexual, pai e por várias vezes presidiário, que mesmo com tantas passagens impressionantes na vida, foi por muito tempo esquecido, só lembrado na margem da sociedade carioca.

Um ponto importante para ser destacado é de que em um cinema feito com pouco dinheiro, ou seja, a maioria do que é produzido no Brasil, contar uma história de época bem feita pode ser um grande empecilho para a imersão do público. Não parece ser o caso dessa história, pois a Lapa é um cenário que até hoje resgata e convive com seu próprio passado. A relação entre a boemia e a "decadência", na visão de muitos cidadãos, é uma característica visualmente marcante. Esse é o primeiro traço dado ao personagem. Algo que se confirma ao longo do filme quando explorado o conflito entre os sonhos e a realidade em que vive.

Toda essa relação só consegue ser bem explicada pois o cenário, figurino e toda a direção de arte do filme realizou um trabalho primoroso. A casa em que vive o personagem é excelente, justamente porque a direção consegue explorar ela em diversos momentos do filme. Cenas de ação, dramáticas e de romance conseguem expor cantos e percepções de um ambiente que um só tipo de cena não conseguiria. E essas cenas trazem a complexidade necessária aos personagens, especialmente o principal. Lázaro consegue imprimir toda a delicadeza de uma artista e performista na noite, sem deixar toda a brutalidade e a indelicadeza que o cotidiano impunha ao Madame Satã.

Essa variação de cenas e sentimentos alimenta a trama como deve ser. O desejo bem claro do protagonista em se tornar um grande artista parece contaminar quem assiste, esperando uma conclusão para isso, seja ela positiva ou negativa. Outro fator do filme muito importante, que acrescenta na história, todavia ainda mais na produção e realização do filme é a necessidade e atualidade do que é contado. Contar a história de um homem negro, homossexual e pobre é sempre um desafio grande, mas algo que precisa ser cada vez mais replicado. Não necessariamente de alguém das mesmas características de Madame Satã, mas de pessoas que sempre foram invisíveis para produções culturais. Diversidade, tanto no elenco quanto da trama, é o futuro e o presente, para que novas histórias sejam realizadas.

Não foram 20 anos que castigaram o filme, pelo contrário, melhoraram essa obra do cinema nacional. O seu merecimento é justamente ter coragem e qualidade o suficiente para contar uma história passada que cada vez mais engrandece com o passar do tempo. Se o diretor, os roteiristas e todo o elenco recebem seu devido espaço na mídia e no mercado cinematográfico, Madame Satã recebe o seu na história da cidade e do país.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Reforços do Fluminense para a temporada de 2025

Leituras de Janeiro

Discos de 2024 que gostei